A voz da militante que ganhou as ruas para exigir igualdade de gênero
23 de março de 2018 - 17:57 #Ceará de Atitude #Daciane Barreto #Mês da Mulher #Militante
Nara Gadelha - Assessora de Imprensa das Coordenadorias do Gabinete do Governador
Davi Pinheiro - Fotos
No mês em que é comemorado o Dia da Mulher, o Ceará de Atitude conta a história de Daciane Barreto, que há mais de quatro décadas transforma a luta feminista no seu propósito de vida
Daciane Barreto nasceu quebrando expectativas. Em 1955, a conservadora família de Barbalha, na Região do Cariri, esperava que a primeira criança a nascer fosse menino. O primogênito deveria ser homem e capaz de nortear o trilho dos outros filhos que viriam. “Foi o rompimento patriarcal inicial e, depois dele, uma sequência que me tornou o que sou hoje”. Daciane sempre foi um ponto fora da curva na pacata cidade do Interior. Com 13 anos já se embiocava dentro dos coletivos feministas. Queria entender como aconteciam as revoluções, os motivos que levavam a uma sociedade tão desnivelada quando se tratava de questão de gênero e o que realmente moldava as diferenças entre homens e mulheres. Procurava compreender o mundo em que vivia. E mais do que isso: ela também queria se perceber.
Aos 18 anos, conheceu um forasteiro, por quem se apaixonou e topou a proposta de passar a noite no lugar onde os pais jamais os encontrariam: no cemitério. Quando amanheceu, voltou para casa e foi aconselhada a assumir o compromisso de “moça fugida, moça casada”. Entraram na igreja de uma maneira não muito convencional, vestidos de calça jeans e blusa vermelha. “O meu pai tinha educação bem rígida, uma concepção que as mulheres deveriam seguir um script, que só poderiam concluir o magistério, casar, constituir uma família e pronto. Mas eu não me conformava com isso, com esse destino. Eu queria ter as rédeas do meu próprio destino”. Depois de uma semana, o casal partiu sem alarde para uma aventura ao norte do País. Foi essa viagem ao desconhecido que abriu a visão para o que estava acontecendo ao seu redor. O ônibus no qual viajavam ia de Ananindeua a Belém, no Pará, e acabou interceptado por militares. Só depois de interrogados souberam que a intervenção fazia parte da reta final da Guerrilha do Araguaia (1967 – 1974), que apertava o cerco a jovens que circulavam por aquelas bandas. Foi ali, explica Daciane, que percebeu de forma mais palpável uma luta por liberdade. Era, enfim, o significado que buscava para o início da descoberta de si.
A imersão nos movimentos e suas conquistas
Com o equivalente a R$ 10 no bolso, Daciane e o então companheiro decidiram regressar ao Ceará. O trajeto de quase 1.500 km ensinou algo que nem escola, nem faculdade nenhuma ensinaria. “Tive o conhecimento do povo, de como ele vive, o que é oferecido, o que ele aspira, quais são as dificuldades colocadas. Me ensinou a enxergar homens e mulheres com a dignidade que eles merecem ter”. Em terras alencarinas, arrumaram empregos temporários, estudaram e passaram para concurso em um banco estadual. Daciane tornou-se mãe pela primeira vez e viu seu casamento seguir uma rota para o fim. Divorciada, mãe de uma pequena, apercebeu que a grandeza de ser mulher ia para além da maternidade.
Dentro do banco, Daciane sentiu os primeiros efeitos da ditadura militar. A perseguição e a repressão sofridas por participar dos movimentos feministas custou o emprego, mas alimentou a vontade de inflamar ainda mais a resistência. “A partir do Centro Popular da Mulher, participamos de forma efetiva e organizada pela bandeira da equidade de gênero. Foi quando se deram as grandes lutas e as grandes conquistas”. O recorte feito por Daciane leva em conta duas frentes, a efervescência das causas feministas e a exigência pelo fim do regime de exceção. Os dois panoramas não caminhavam em paralelo, mas são imbricados. Justamente nesse cenário, Daciane foi presa. O ano era 1983, e o Ceará passava por uma das grandes secas que assolaram o estado. Sem emprego, os homens migravam para São Paulo e deixavam as mulheres sem opção de sustento. No município de Pacajus, Daciane mobilizou um levante pelo direito de fazer parte das frentes de serviço. No começo foram 100 participantes, depois 1.000 e a última manifestação chegou a reunir 5.000 mulheres, que tomaram todos os cantos da cidade. O impacto foi tamanho que não houve outra solução vislumbrada pelas autoridades da cidade a não ser levá-la presa. “Saí de lá, pois havia o risco de derrubarem a porta do lugar. Sabe o que isso significou? A conquista das cearenses de participar daquilo que tanto gritamos para ter: direito ao trabalho”. Em 1986, o movimento garantiu a criação do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher – do qual Daciane fez parte – e a primeira Delegacia da Mulher.
Quando a ditadura findou, Daciane integrou um coletivo de mulheres da sociedade civil que, junto com um grupo de parlamentares, escreveu as propostas da Constituição Cidadã de 1988. As proposições foram aceitas quase em sua integralidade. Entre elas, o fim do pátrio poder e a equidade de direitos e deveres entre homens e mulheres. “Os homens tinham a primazia dentro do lar. Eles mandavam nos salários, nos casamentos, nas separações e nos filhos. Mandavam nos corpos e nos destinos das, mulheres. Nós rompemos com isso. E assim permanecerá enquanto fincarmos nossos pés nas ruas e praças dos quatro cantos do mundo”. A ativista fez parte ainda da Comissão das Mulheres pela Anistia, tornando-se ela mesma uma anistiada política. Somente em 1989, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) retirou seu nome da lista de perseguidas, concedendo, décadas depois, acesso ao relatório de suas atividades.
O tempo não para
Lobby do batom foi um termo utilizado pelo movimento feminista cearense para satirizar um parlamentar conservador que teimou em afirmar que a única coisa que as mulheres sabiam fazer era usar batom. “Agora pronto! Nós usamos batom, mas sabe o que fazemos melhor? Lutamos”. As conquistas institucionais e comportamentais, aponta Daciane, podem ser consideradas como avanços significativos. As desconstruções acontecem no cotidiano. Ousar ir para rua denunciar, reivindicar, dizer que o corpo pertence à própria mulher e que nenhuma aceitará o contrário disso é mais do que uma fala e não está somente no campo das ideias. “Historicamente, temos o papel de nos insurgir contra o que nos esmaga, contra o que está nos fazendo mal. Com o tempo, vemos diferença em como você vai enfrentar a luta”.
Passados 32 anos, a militante elenca avanços importantes como a construção do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência; a Lei Maria da Penha, a Lei contra o Feminicídio e o fortalecimento da Rede de Enfrentamento. “Temos também aqui no Ceará as Unidades Móveis, os projetos de discussão com as mulheres do campo, das florestas e das águas. Ela é fruto das pautas específicas das mulheres, que sempre se basearam no tripé de raça, classe e gênero para avançar em suas propostas de políticas públicas”. Nesse percurso já trilhado e para aquele que ainda está sendo construído, Daciane vislumbra um futuro que parece utópico, mas não é. “A gente tem que acreditar no ser humano. Precisamos satisfazer nossas necessidades físicas, intelectuais, subjetivas e afetivas de forma livre e respeitosa. Onde, de fato, as pessoas possam basear seus conceitos de respeito e de desejo de uma vida feliz”.
A trajetória de Daciane a transformou em uma das feministas mais respeitadas do Ceará, tanto pelo seu histórico de mobilizações quanto pelo incessante trabalho em reverberar as vozes de milhares de mulheres. Atualmente, ela integra a equipe da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo do Ceará e reforça a importância em permanecer firme aos princípios que sempre a incentivaram a ver os rompimentos como algo bom. “A gente não quer somente que violência amenize. Isso seria muito pouco. Nós temos que extirpar a violência da sociedade. Nós sabemos que gênero é uma construção social, econômica politica e cultural. Temos que desconstruir inúmeros conceitos, quebrar amarras, e ir construindo entendimentos. Eu entendo que a luta é longa, histórica, mas ela não termina hoje”.