A juventude que fortalece a luta por igualdade racial
24 de março de 2020 - 17:35 #escravidão #Lei Áurea #negros
Ascom SPS
O Brasil foi o último país do ocidente a libertar negros escravizados. A sanção da Lei Áurea aconteceu em 13 de maio de 1888 e jogou sobre a princesa Isabel o protagonismo de um processo que, na verdade, foi construído e conquistado por diferentes setores da sociedade. Um processo sobretudo popular. Pioneiro, o Ceará foi a primeira província do País a libertar a população negra que era explorada, castigada, subalternizada. A abolição no Estado aconteceu quatro anos antes do restante do Brasil, em 25 de março de 1884, marco histórico que em 2011 se tornou a Data Magna do Ceará, através de lei publicada no Diário Oficial do Estado. Mais que um feriado, uma data que não pode passar despercebida, momento para impulsionar reflexões e celebrar um grupo étnico que compõe a cearensidade e conta com a vivacidade de uma juventude que já não aceita narrativas engessadas e manuais de conduta. É a juventude que se encontra com sua pele preta e seu cabelo afro. É a juventude que se assume e se gosta negra e que se espelha na vanguarda do Ceará para formular e reformular o cotidiano com outras formas de existência.
Coordenadora Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), Zelma Madeira destaca o protagonismo dos então cativos escravizados na condução do processo que levou à abolição da escravidão no Ceará. “Essa população sempre resistiu em todos os lugares dessa nação. Não esperaram que a abolição acontecesse como dádiva da elite branca para que os negros fossem libertos. Teve toda uma dinâmica de resistência, de conflitos. Não se deu de forma harmoniosa. Se deu pela via de contradições, de tensionamentos”, afirma. Publicitária e uma das fundadoras do Portal Ceará Criolo, Tatiana Lima também destaca que o 25 de Março é dia de orgulho e luta. “Orgulho porque o Ceará mostrou uma postura vanguardista e o pontapé inicial veio por uma classe ainda hoje invisibilizada, os jangadeiros, personagens que são a cara do Ceará e simbolizam tão bem nosso estado. É povo! Ver que esse movimento veio do povo me orgulha muito. E é luta no sentido de ainda hoje estarmos tentando dar a visibilidade que a data merece e precisa ter. Ela foi esvaziada no nosso próprio estado, as pessoas não sabem do que se trata, se resume a um feriado do qual as pessoas gostam, mas não necessariamente sabem o que é ou qual a importância”, ressalta.
Tatiana Lima tem 36 anos. Natural de Fortaleza, é cria do Jardim América. Apaixonada pelo Ceará, ferrenha defensora da sua terra, Tatiana diz que o 25 de março está na suas vivências desde os detalhes até grandes ações e conta que há cerca de seis anos iniciou uma espécie de processo pessoal de descolonização. Como tantas meninas e mulheres da pele preta, começou sua jornada pela aceitação do cabelo crespo, segundo ela uma das características mais fortes da sua imagem de mulher negra. “Passei 17 anos alisando o cabelo religiosamente. Deixar meu cabelo crespo vir à tona e amar ele dessa forma, amar a minha imagem de mulher preta reverberou em outras áreas da minha vida. Percebo que minha presença de pessoa preta e militante faz diferença. Costumo dizer que a presença negra nos lugares é muito pedagógica. Há temas que começam a ser debatidos com mais frequência, as pessoas tendem a prestar atenção no que estão falando, se estão reproduzindo atitudes racistas”, destaca ao reforçar a importância de se assumir como pessoa preta. “Ouço muito ‘minha filha, não diga que você é negra, você é morena jambo, é mulata, qualquer coisa’, mas não, eu sou uma mulher negra. E você afirmar isso no dia a dia é revolucionário”, ressalta Tatiana.
Segundo Zelma Madeira, a Data Magna do Ceará é uma oportunidade para que a população cearense questione a narrativa de que no Ceará não há negros, discurso que acaba por causar a invisibilidade deste grupo étnico. Publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2018 apontou que a porcentagem da população declarada preta no Ceará subiu de 2,9% para 5,3% entre os anos de 2012 e 2018. “A demarcação dessa presença vem mostrar todo o legado cultural, a contribuição e a riqueza que é a diversidade. Mostra também toda a violência que é o racismo. Essas populações, os descendentes de africanos, sofrem o peso do preconceito; o peso do preconceito em ação, que é a discriminação; e o peso dessa discriminação, inscrita sob o racismo estrutural, que tanto legitima as desigualdades. Temos que pensar que tem desigualdade e tem vulnerabilidade, mas essas populações não pereceram, não desapareceram”, explica Zelma.
Para Rômulo Silva, 33 anos, jornalista, mestre em Sociologia e doutorando na mesma área, a Data Magna do Ceará representa uma demarcação histórica que resulta de resistência e sangue, em um processo em que não cabe romantismo. “É importante a comemoração por ser um momento de reflexão sobre o significado de uma história colonial que, é fundamental lembrar, é atemporal, isto é, se atualiza sob novas formas de controle e dominação de determinados corpos da sociedade. E esses corpos nós sabemos quais são: negros, pobres, residentes nas periferias e favelas”, reforça ao destacar que é na construção coletiva que se idealizam novos olhares para a causa. “As juventudes têm pensado como confrontar essas lógicas por meio da construção e do fortalecimento de pautas que trazem no centro do debate a tessitura interseccional que pensa esse corpo ferido, assassinado, encarcerado, a partir de outros campos de saberes e de outras práticas. É fundamental e isso tem sido feito pelos movimentos sociais, por parte da sociedade civil. Têm sido pensadas formas de confrontar e tentar minar essa lógica que é colonial, machista, misógina e homolesbotransfóbica. Isso não é de agora: o povo negro, de maneira não romântica, tem buscado permanecer vivo e escapar da lógica colonial”, conclui.
Pensando a informação como forma de resistência e ferramenta notável em qualquer processo educativo, o Governo do Estado lançou em novembro, através da SPS, a campanha Ceará sem Racismo, ação que busca pautar a discussão de enfrentamento ao racismo, levando diálogo e gerando debates nos municípios cearenses. “Para nós, em um tempo de dificuldades para pensar políticas transversais de direitos humanos, em particular a questão racial e a luta pela igualdade racial, a campanha Ceará sem Racismo é mais um componente que soma à nossa luta, a nossos esforços governamentais de fazer a transversalidade da igualdade racial e convocar a máquina pública, a sociedade como um todo, os movimentos sociais, para que não percamos esse lugar de protagonismo, de sair na frente e de ver que essas populações têm riqueza cultural, econômica e política. Não se tratava apenas de mão de obra para o modo de produção escravista. A história do povo negro era e é marcada pela diversidade e tem muito a contribuir conosco, na consolidação de um estado que se vê verdadeiramente democrático”, afirma Zelma Madeira.