De abrigo em abrigo, João Paulo construiu um caminho que parecia impossível
26 de fevereiro de 2018 - 17:32 #Ceará de Atitude #centro socioeducativo #educação
Caio Faheina - Repórter
Davi Pinheiro e Marcos Studart - Fotos
Neste mês de fevereiro, a série especial Ceará de Atitude conta a história de João Paulo Araújo, colaborador da Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo que passou parte da adolescência em abrigos. Atualmente cursando Direito, João Paulo sonha ser juiz
Dezembro de 1997. A data ainda lateja na mente de João Paulo Araújo. Foi o dia em que ele, à época com 13 anos, chegou ao SOS Criança, em Fortaleza, e que, posteriormente, atravessou pela primeira vez o chão do abrigo José Moacir Bezerra – um dos nove redutos atendidos pela antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor do Ceará (Febemce), extinta em 1999. João Paulo não era um adolescente abandonado, tampouco infrator, características que perfilavam meninos e meninas acolhidos no abrigo. As rotas que o levaram até aquele refúgio foram outras.
Ainda meninote, aos 7 anos, João Paulo decidiu catar latas e papelão pelas ruas da Barra do Ceará, onde morava. “Pedi ao meu avô um pedaço de pão e ele não tinha pra me dar. Depois vi ele chorando no corredor, próximo à cozinha. Foi aí que eu decidi fazer alguma coisa”, justificou. A partir dali, João foi carregador de cerveja, servente de obras, garçom e o que mais precisasse para colocar comida na mesa da casa dos avós e no estômago. Mas não foi criança. Uma vida de ausências, ele conta. “Não conheci meu pai, mas, pelo que sei, ele era envolvido com droga. A minha mãe viveu no alcoolismo e a minha irmã era envolvida com gangues”, rememorou.
As brincadeiras na rua com as crianças do bairro também são momentos que João Paulo prefere não guardar. “Uma vez, ouvi de uma pessoa algo que nunca esqueci: ‘não brinque com aquele moleque, ele vai ser igual ao pai’. A frase ficou marcada na minha vida”, recordou. Foi o pontapé para rabiscar outros caminhos. João Paulo, hoje com 33 anos e contratado como supervisor de Gestão e Equipe na Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas), então, começou a trabalhar em uma locadora na região.
Pouco tempo depois, a administração do local decidiu por mudar a casa de videogames da Barra do Ceará para o Carlito Pamplona, também na periferia de Fortaleza. João foi convidado a morar com os proprietários do negócio e, autorizado pelos avós, que também acreditavam num futuro melhor para o neto, deixou o mais antigo bairro da Capital. “Cheguei para morar com ela (a dona da locadora), e vi que não era como eu sempre sonhei. Eu acordava às 4:30, tinha que limpar 15 gaiolas de passarinhos, o local onde os cachorros faziam necessidades – e os cachorros dormiam comigo no quarto -, além de cuidar da locadora. Quando eu ia pedir um dinheiro para levar para o meu avô, ela dizia que não tinha dinheiro. E nunca me colocou para estudar”, lamentou.
Foi quando João Paulo percebeu que a vida ali não lhe cabia – e nem a qualquer outra gente. “Foi uma época em que eu tentei suicídio. E eu já tinha tentado outras três vezes”, disse, marejando os olhos. João, então, fugiu. Dormiu em ruas, avenidas e, ele enfatiza, sob a marquise do hoje Cineteatro São Luiz, no Centro. “Um dia, por ali, passei em frente a uma loja que tinha uma televisão. E tava passando propagandas. De repente, uma propaganda dizendo ‘Aqui você realiza o seu sonho, venha para o Rio de Janeiro’”, reproduziu.
E João seguiu a indicação. Pegou um ônibus, desceu nas imediações da BR-116 e caminhou na estrada como se Rio de Janeiro fosse a cidade subsequente. No percurso, encontrou gente que lhe ofereceu comida, água e abrigo. E também gente que lhe ofereceu dor. “Um rapaz disse assim: ‘Vamos ali na minha casa, está ficando tarde, anoitecendo, é muito perigoso aqui nessa pista à noite’. E me levou para residência dele. Quando chegamos, havia outros colegas lá, todos fumando maconha. Ele me apresentou a esposa, me deu de comer, mas, quando foi de madrugada, me explorou sexualmente”, relatou sem arrodeios.
De abrigo em abrigo
No dia que sucedeu a violência, João Paulo não olhou para trás. Desde a saída de Fortaleza até Pacajus, município distante 49 km da Capital, onde a caminhada teve fim, foram dois dias de peregrinação. Na cidade, foi abordado por um policial que, percebendo que João fugira de casa, encaminhou o menino até a “Defesa do Menor”, no município de Horizonte. De lá, foi conduzido para o SOS Criança, em Fortaleza, de onde seguiu para o abrigo José Moacir Bezerra. No local, onde atualmente funciona o Centro Educacional Aldaci Barbosa Mota, no bairro Antônio Bezerra, assumiu uma nova identidade: a partir daquele momento, João seria Cleiton Cardoso de Sousa – nome de um amigo de infância. Uma tentativa de esconder o passado para preservar quem amava.
Nos primeiros dias no abrigo, Cleiton foi agredido pelos colegas da unidade. E como forma de punição por algumas condutas, encaminharam o menino para outros abrigos da Região Metropolitana de Fortaleza. São Francisco, Dom Bosco e São Miguel foram alguns deles. Mas, apesar da repressão, decidiu continuar. “No abrigo, tinha refeição, estudo; tinha pai, mãe e assistente social, que todos os dias me chamava para conversar. No abrigo tinha passeios; conheci zoológico, teatro. Todas as oportunidades que um jovem na minha idade queria ter”, elencou.
Tempo de mudança
Os meses passaram e Cleiton foi construindo alguns laços, principalmente com gente da administração dos abrigos. A aproximação veio como transformação. Aos 16 anos, ingressou no Corpo de Bombeiros da Polícia Militar, como brigadista, e, aos 18 anos, teve oportunidade de entrar em um programa voltado à cidadania e inclusão social e profissional. Começou no setor de segurança da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) e por lá ficou. Momento em que apresentou-se novamente como João Paulo para recomeçar.
Na STDS, João cruzou 21 anos. Foi vigia, passou pelo setor administrativo, quebrou galho como cerimonialista, coordenou programas sociais, conheceu outros municípios do Estado. Depois, tornou-se socioeducador – período em que visitou o abrigo São Francisco, uma das unidades onde esteve na infância, pela primeira vez como profissional. “Quando eu entrei na unidade para ser socioeducador, entrei na ala 3 e, quando olhei para o dormitório 13, estava do mesmo jeito”, percebeu. “Quando vi aqueles adolescentes todos cumprindo medida socioeducativa, eu comecei a relatar para eles a minha vida e alguns ficaram surpresos”, continuou.
Casado há oito anos e morando no município de Caucaia, hoje João Paulo continua refazendo a vida. Está cursando o quinto semestre do curso de Direito e trabalha voluntariamente na Vara da Infância e Juventude do Poder Judiciário. Sonha em ser juiz. “Troquei as armas pelas canetas e lápis, e as (más) amizades pelos livros. Entendi que a educação é o que muda uma pessoa. E que nunca se pode perder a esperança”, ensinou.